BISSEXUALIDADES

in Somos, 3, 1, SP, 2000

A utilização do plural “bissexualidades” justifica-se pelas múltiplas dimensões que esta noção comporta. A idéia de uma bissexualidade potencial sempre habitou o espírito humano constituindo um fenômeno freqüente em várias religiões. Em inúmeros mitos e rituais de androgenia encontramos a tese de uma primeira divindade suprema, que seria andrógina, e que após ter-se separada em masculino e feminino gerou a primeiro casal divino. 

Para a mitologia, a bissexualidade representa uma das manifestações da unidade fundamental; um dos aspectos antropomórficos do ovo cósmico onde, tanto no início como no fim do mundo, só existiria um Todo onde os opostos se confundiriam: no início só há potencialidades, e a primeira bipartição criou os opostos noite/dia, céu/terra. A mitologia grega é repleta de histórias nas quais os heróis são apresentados ora como homens, ora como mulheres, ou ainda de forma dupla: ao mesmo tempo homem e mulher. A idéia de um indeterminismo inicial encontra-se também presente na física moderna com a teoria do Big Bang. 

Um outro aspecto da questão é dimensão psicológica da bissexualidade. Na literatura filosófica e na psiquiatria, esta noção aparece em volta de 1880 como mais uma nomenclatura. Com a psicanálise, a bissexualidade passa a ser trabalhada como o resultado das identificações masculinas e femininas constitutivas do psiquismo humano: todo ser humano possui traços psíquicos masculinos e femininos resultado das identificações com os dois sexos. Ao nascer, o ser humano só possui potencialidade e sua identidade sexuada será construída através dos processos identificatórios. Isso significa que a anatomia com a qual o sujeito vem ao mundo não garante, em absoluto, os destinos de sua identidade sexuada, como bem o mostra o transexualismo e intersexo. Porém, é importante frisar, não se pode ter os dois sexos.

“Sexo” vem de Secare: cortar, separar. “Sexuar”, no sentido da identidade sexuada, implica em separação, em corte: a diferença (dos sexos) deve ser marcada e a monossexualidade imposta. Uma observação se impõe: as referências identificatórias masculinas e femininas constitutivas do psiquismo não se confundem com os comportamentos ditos masculinos e femininos que variam segundo a cultura, os costumes e a época. 

O uso popular da palavra bissexualidade, que caracteriza um sujeito que se sente indistintamente atraído por mulheres e por homens, traz confusões suplementares. Por isso, é de extrema importância a distinção entre estas duas abordagens da questão para compreendermos duas problemáticas que freqüentemente são confundidas: por um lado, o sentimento que se estabelece bem cedo e que se traduz por: “Eu sou menino” ou “eu sou menina”; por outro lado a chamada “orientação sexual” – homossexual, heterossexual ou bissexual – que pode, em determinadas situações, alterar-se. A chamada “orientação sexual” – homo, hétero ou bi – não deve ser confundida com o sentir-se homem ou mulher. Sentir-se atraído (a) tanto por homens como por mulheres é uma coisa; não saber se se é homem ou mulher, é outra coisa. O fato de um sujeito hesitar entre o desejo de penetrar, ou de ser penetrado, não coloca em questão que será como homem que ele será penetrado ou que penetrará. 

A experiência clínica mostra que ninguém está ao abrigo de “crises” – bastante comuns na adolescência – quanto à sua orientação sexual o que, entretanto, não ameaça a identidade sexuada do sujeito. Por outro lado, a situação é bem mais complexa e geradora de outra forma de angústia, quando o sujeito duvida se ele é um homem ou uma mulher. 

Cabe ainda lembrar que atitudes, por vezes preconceituosas, geradas pelo peso dos valores sócio-culturais e por posições moralistas e normativas, podem ser responsáveis por um silêncio e uma desinformação que fazem com que, não raro, um sujeito se pergunte se ele/ela é homem, ou mulher, por sentir-se atraído(a) por um homem ou por uma mulher, o que pode levar-lhe a sofrimentos psíquicos os mais 
diversos.

Em cartas trocadas com Freud, Fliess introduz a idéia da bissexualidade inata. Freud desenvolve esta idéia nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, segundo a qual todos nascemos com uma predisposição à bissexualidade, e ao longo do desenvolvimento, acabamos por reprimir o desejo pelo mesmo sexo (tornando-nos heterossexuais) ou o desejo pelo sexo oposto (tornando-nos homossexuais). E seguimos carregando vestígios e aspectos da sexualidade que foi reprimida, devido à predisposição para a bissexualidade.

Se a homossexualidade é representada como um mistério, isso também deveria caber à heterossexualidade. Para ele há de se perguntar pela gênese tanto de uma quanto de outra. Pois para a psicanálise todos nascemos, vamos assim dizer, “bissexuais”. A orientação originária é a bissexualidade. A monossexualidade, seja ela hetero ou homo, só se dá com o decorrer do desenvolvimento. Neste sentido, psicanalítico, nascemos bissexuais e aprendemos a ser hetero ou homo. [E o termo aprendizagem, para o senso comum, também adquire alguns sentidos que não os adotados pela Psicanálise. Basta dizer que é aprendido, para alguém já logo pensar equivocadamente que deve haver alguém, alguma pessoa que ensina. Para não me estender muito sobre isso, resumo: aprendemos o tempo todo, e o mundo (incluído aí o mundo das coisas) ensina.]

Logo, somos todos, como pretendia Freud, originariamente bissexuais. Eis aí o paradoxo do senso comum: enuncia uma regra que, por implicação lógica, estabelece a bissexualidade como universal, coisa que a própria sociedade rejeita.

Influências do Conceito da Bissexualidade na obra de Freud: 1- Carta 52 (Viena, 06 de Dezembro de 1896): “A fim de explicar por que o resultado [da experiência sexual prematura] às vezes é a perversão e, às vezes, a neurose, valho-me da bissexualidade de todos os seres humanos” (Freud, 1895: 286 – grifos nossos). 2- O recurso à bissexualidade, capítulo 1 de “Os três ensaios…”. A respeito do hermafroditismo, Freud coloca: “A concepção resultante desses fatos anatômicos conhecidos de longa data é a de uma predisposição originariamente bissexual, que, no curso do desenvolvimento, vai-se transformando em monossexualidade, com resíduos ínfimos do sexo atrofiado” (Freud, 1905: 134 – grifos nossos). Na nota de rodapé referente a esse mesmo assunto, encontramos: “O reconhecimento da importância da bissexualidade pelo próprio Freud muito se deveu a Fliess (…) Contudo, ele não aceitava a visão de Fliess de que a bissexualidade forneceria a explicação do recalcamento” (Freud, 1905: 136). 3- Na nota do editor do artigo História de uma neurose infantil (1918 [1914 ]), encontramos: “Talvez a principal descoberta clínica seja a de revelar a evidência do papel determinante desempenhado na neurose do paciente pelos seus impulsos femininos primários. Seu marcado grau de bissexualidade era apenas a confirmação de pontos de vista há muito defendidos por Freud, que datavam da época de sua amizade com Fliess. Nos seus escritos subsequentes, porém, Freud deu ainda mais ênfase ao fato da ocorrência universal da bissexualidade e da existência de um complexo de Édipo ”invertido” ou ”negativo” (…) Por outro lado, resiste com veemência a uma tentativa de inferência teórica no sentido de que os motivos relacionados com a bissexualidade são os determinantes invariáveis do recalque” (Freud, 1918: 18 – grifos nossos). No último capítulo desse artigo, intitulado Recapitulação e problemas, Freud fala em introduzir uma ligeira alteração na teoria psicanalítica. E nos diz: “Parecia palpavelmente óbvio que o recalque e a formação da neurose haviam-se originado do conflito entre as tendências masculina e feminina, ou seja, da bissexualidade. Essa visão da situação, no entanto, é incompleta (…) Insistir que a bissexualidade é a força motivadora que leva ao recalque é assumir uma visão por demais estreita” (Freud, 1918: 116-117 – grifos nossos). 4-No artigo Uma criança é espancada (1919) em suas últimas páginas (214 e segs.), Freud coloca-se contra a teoria de Fliess quanto à constituição bissexual dos seres humanos e a questão do recalque acontecer na parte que pertence ao sexo oposto. 5- No artigo A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920), Freud assim se expressa: “(…) sua última escolha correspondia não só ao ideal feminino, como também ao masculino; combinava a satisfação da tendência homossexual com a tendência heterossexual. É bem sabido que a análise de homossexuais masculinos em numerosos casos revelou a mesma combinação, o que deveria nos alertar contra formarmos uma concepção demasiado simples da natureza e gênese da inversão e mantermos em mente a bissexualidade universal dos seres humanos”(Freud, 1920: 168 – grifos nossos). Freud fará ainda várias referências à questão da bissexualidade em diversos artigos, tais como, Sexualidade feminina (1931); na conferência XXXIII sobre Feminilidade (1932); e outros.Fontes:

http://pt.shvoong.com/humanities/1657820-influ%C3%AAncias-conceito-da-bissexualidade-na/

http://www.ceccarelli.psc.br/

Lapanche e Pontalis, 1991

Sexualidade feminina, Freud, 1931